



“Não haveria o João se a Marielle não tivesse nascido. Ela não morreu, apenas se transformou no que sempre foi”. Assim, o mineiro de fala cantada e jeito simples, João Gabriel Freitas, 30 anos, resume todo um processo com fases complicadas, mas sempre levadas com muita personalidade. O estudante de design gráfico é transgênero e conversou conosco sobre sua vida, as fases e as mudanças.
TIÊ: Como você definiria o João Gabriel?
JOÃO GABRIEL: Nossa, é difícil porque eu não gosto de definição, eu acho que a gente tem que ser, sentir e deixar as coisas acontecerem. Definição para mim é a mesma coisa que rotulagem. Eu não gosto de rotular. Quando você começa a rotular vem o preconceito, o estereótipo e eu não gosto desse tipo de coisa. Mas se eu fosse definir, eu falaria que eu sempre fiz o que eu quis sem me importar com os outros, se algum ia achar ruim. Sempre segui meus ideais e meus pensamentos. Meu limite é não prejudicar ninguém.
T:Qual foi o papel da sua família no seu processo?
JG: Muito importante. No começo eu mesmo tinha muito medo do que, principalmente minha mãe, ia pensar porque eu tenho uma ligação muito forte com a minha mãe.
Meu pai, por ser caminhoneiro, ficava muito tempo fora de casa. Então ela que ficava mais com a gente, mesmo sendo enfermeira. Quando eu fui me descobrindo eu tive medo de como eles iam reagir, jamais por me rejeitarem, mas sim por minha mãe ser superprotetora, muito cuidadosa.
T: Quando você se viu desconfortável com seu corpo? Qual era a principal mudança que desejava ter?
JG: Desde os cinco anos eu já não usava vestido. Quando minha mãe comprava eu rasgava porque se ela visse, ia colocar em mim. Com oito anos eu já não gostava de ter cabelo longo e sempre brinquei com os meninos, nunca gostei das coisas que meninas da minha idade gostavam. Com dezoito anos decidi conversar com meus pais, meus amigos e quis começar a usar meu nome masculino. E o que eu mais queria mudar era a voz e ter barba. Eu ainda acho a minha voz muito fina comparado a uns colegas meus.
T: E o que significou a cirurgia de retirada das mamas para você?
JG: Tem dois anos que fiz a toracoplastia masculinizadora, que é a retirada das mamas. Em 2015 meu pai veio conversar comigo e disse que eu ia fazer minha cirurgia. Foi quando vendeu o sítio que tinha. Em maio do ano passado eu fui no Dr. Rodrigo Jacó, em São Paulo, fiz a triagem e em julho eu operei. Antes disso eu usava faixa e era extremamente desconfortável porque eu usava direto, só tirava para tomar banho. A faixa apertava, sufocava, a pele ficava preta, marcada e as vezes eu colocava gaze porque a pele ficava assada e sangrava. Mas quando eu tirei os seios a primeira coisa que fiz foi andar sem camisa para cima e para baixo. Ficava com o dreno e sem camisa. Minha mãe falava para eu colocar a camisa e eu falava para ela “eu esperei 28 anos para isso!”.
TRANSGÊNEROS SEM ESTEREÓTIPOS
As diferenças entre gênero e orientação sexual ainda causam interpretações equivocadas, mesmo com a liberdade percebida a respeito de discussões acerca de sexualidade. Não é à toa que a sigla LGBT atualmente apresente um ‘’+’’ , uma vez que não se restringe a apenas ao movimento gay/bi, mas também ao núcleo trans , que engloba além dos transexuais, os transgêneros (estes que, por sua vez, podem ter várias ramificações).
O sexólogo Cláudio Picazio classifica em 4 partes os pilares da sexualidade humana e explica de forma prática como eles se relacionam:
Gênero é o seu sexo biológico (homem e mulher).Orientação Sexual tem a ver com quem se deseja relacionar romantica e sexualmente (homossexual, heterossexual e bissexual). Já Papel Sexual tem a ver com comportamento, sua atitude e como você é percebido (sendo comum que se confunda o Papel com Orientação, uma vez que grande parte da sociedade pressupõe que uma mulher com comportamento masculino seja lésbica, por exemplo).Finalmente, Identidade Sexual é como você se percebe (alguns costumam definir como sexo cerebral).
De forma prática, um menino hetero típico tem gênero masculino, papel masculino, orientação heterossexual e identidade é masculina. E um menino gay pode possuir orientação diferente, entretanto se encaixar nos outros pilares igualmente. Já um transgênero possui identidade sexual distinta do seu gênero biológico. Assim formam-se as mais diferentes variações de gênero, identidades, papéis e orientações sexuais.
Há ainda quem não necessariamente se identifica com um gênero específico. Os chamados gênero fluidos possuem compreensões dinâmicas ou flutuantes do próprio gênero, mudando de um para outro de acordo com o momento/período que vivem. Podem se sentir mais como um homem num dia, mais como uma mulher no outro, ou sentir que nenhum dos termos se aplica a ele.
O ESPORTE, O DESAFIO, O GÊNERO E A FISIOLOGIA COMO BARREIRA
A alteração do que a literatura Jurídica chama de prenome, foi um decreto sob o número 55.588 viabilizado em Março de 2010 e dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo. Frederico dos Santos Messias, Juiz Titular da 4ª Vara Cível de Santos, que exerce o papel de corregedoria dos cartórios extrajudicial de Registro Cível, explica que não há uma definição legal do que seria uma pessoa transgênera. “A definição parte mais pela medicina, do ponto de vista psicológico, psiquiátrico, psicossocial”. Desta forma, esclarece que as políticas públicas que visam os transgêneros a respeito do nome social, apesar de ser uma conquista, se mantém como um procedimento constrangedor e que exige ação judicial. “Não é burocrático, não é demorado, mas eu, pessoalmente acho constrangedor que essa alteração tenha que passar por uma decisão judicial prévia, porque o entendimento do juiz pode variar. E hoje estou aqui e amanhã posso não estar. Então, pode vir um outro que pense diferente.”, completa.
Para Charlotte Garcia, orientadora sócio-educativa, ainda é necessário um processo de desburocratização. A aprovação da Lei João Nery (PL 5002/2013) seria um grande avanço, considerando que grande parte das atuais exigências para a inclusão do prenome seriam retiradas. “A quantidade de catracas que temos que passar envolvem enormes esperas e laudos médicos, comumente de pessoas cisgêneros ‘atestando’ sua transgeneridade”. explica.
Além da possibilidade de alteração do nome, existem projetos como o Transempregos, um site que divulga vagas de empregos formais para transgêneros. Foi criado em 2013 por Paulo Bevilacqua, artista plástico; Daniela Andrade, membro da Comissão da Diversidade Sexual da OAB de Osasco; e Marcia Rocha, advogada e a primeira trans a conquistar o nome social na OAB. Embora seja perceptível alguns avanços nas políticas públicas que contemplam os transgêneros, o Brasil precisa de amplo empenho nos projetos de inclusão e de educação. “Perguntar pra uma pessoa trans se ela já sofreu discriminação e ela te responder ‘não’ é o meu maior sonho. É pra isso que a gente luta. Eu já passei por perseguições com ameaça de morte na estação do Tietê e Sé do Metropolitano de São Paulo.”, esclarece Charlotte.
Respeitar diferenças é básico e obrigação de todos. Conviver bem com as diferenças é atitude de quem tem conhecimento e empatia pelo próximo.
O PONTO DE VISTA LEGAL
PERFIL: JOÃO GABRIEL FREITAS
QUESTÃO
DE
GÊNERO
‘’Historicamente, a sociedade convive com o conceito de gênero como sendo masculino ou feminino, entendendo equivocadamente que a construção de ser homem ou mulher é baseada nos órgãos genitais. A partir disso, a família, amigos e instituições sociais esperam de cada um de nós uma categoria de comportamentos específicas para aquele gênero que nos pertence.‘’, relata a psicóloga Fabíola Luciana. Enfatizando as diferenças supracitadas, explica que ‘’sexo é biológico, gênero é social. Isso quer dizer que o determinante da definição do que é ser homem ou mulher não é ser XX ou XY, e sim a forma como aquela pessoa se percebe e se reconhece.’’
Paralelamente, ainda temos o universo drag queen/king, os quais se fantasiam do sexo oposto com o intuito profissional e pela arte. Allamo Lima (33) compartilha um pouco do trabalho de interpretar a drag Chica Chiket há mais de 15 anos.‘’Tudo começou quando um dia fui fazer uma festa junina e puxei a quadrilha interpretando a vovó Mafalda, e as pessoas adoraram. Quando a coisa começou a ficar profissional eu decidi fazer Publicidade e Propaganda para ajudar a divulgar o meu trabalho e entender todo esse universo.‘’
Entretanto, a aceitação por parte da família foi complicada. "No começo foi bem difícil, algumas pessoas da minha família me criticaram, e meu pai não aceitava, pois era muito machista e minha mãe tinha medo do que pudesse acontecer comigo.‘’. Quanto à profissão, enxerga os avanços conquistados pela classe, porém percebe as barreiras que ainda existem com o preconceito da sociedade. ‘’Quando eu comecei nós não tínhamos muita visibilidade, mas com o passar dos anos as coisas vem melhorando. Sobre o preconceito, infelizmente acho que nunca vai acabar. Quando me deparo com situações do tipo, tento relevar e não dar muita audiência. Hoje, graças a Deus, consigo viver apenas do meu trabalho como drag queen, e assim vou conquistando meu espaço cada vez mais. ‘’

têm ‘vantagem’. Esse argumento deixa de existir se as pessoas souberem pesquisar sobre o assunto.”
Dilmar Guedes, fisiologista e profissional de educação física, pontua que a parte biológica pode ser um ponto crucial de interferência para atletas transgêneros no esporte em geral. Segundo ele, há uma vantagem para mulheres trans por terem sido expostas à testosterona enquanto se desenvolviam biologicamente, mesmo em baixos índices. “A testosterona é o hormônio da potência, da força, da velocidade e da agressividade. Por isso, já ficaria complicado por causa desse aspecto. O lado da mulher, desde que ela não usasse a testosterona exógena, a colocaria em vantagem. O que é preciso deixar bem claro é onde ele ou ela irá competir porque o fator que me preocupa mesmo é o biológico”. Explica ainda que o homem transgênero não possui muitas vantagens por causa de hormônios “Se ele usa o farmacológico e vai competir com os homens, ele não vai levar vantagem porque estes já têm essa testosterona. Agora, se por acaso, ela for transexual e competir com as mulheres, leva vantagem por causa do hormônio da testosterona principalmente nas modalidades femininas de potência e velocidade”.
Por mais que muitos ainda considerem essa questão como polêmica, o transgênero dentro do esporte é uma realidade. Na superação de limites e na quebra de paradigmas.
É evidente que entre os atletas profissionais há uma busca incessante por ultrapassar barreiras para chegar à vitória, mas ultimamente a questão da pessoa transexual dentro da prática esportiva se tornou frequente. Para aumentar a discussão sobre a vantagem acerca da dos aspectos fisiológicos, o COI, Comitê Olímpico Internacional, liberou a participação de atletas trans nos Jogos Olímpicos do Rio em 2016. Entretanto, nenhum deles conseguiu qualificação para os Jogos, mas a decisão tomada pela entidade foi histórica.
Thomaz Oliveira, ex-nadador e transexual, se descobriu aos 19 anos. Quando competia, a feminilidade não lhe era imposta. Diz que teve medo de tomar a decisão em assumir sua escolha e recomenda para quem busca mudar procurar pessoas de confiança, serviços oferecidos na região e, principalmente, um psicólogo. “Falando do atleta transexual no Brasil, eu considero que há muito que evoluir. Ser atleta não é fácil, a desvalorização é muito grande, porém, pelo menos você é reconhecido como pessoa”, conclui Thomaz. Também destaca que o Estado precisa reconhecer com urgência o esportista transgênero: “Eu particularmente não conheço atletas que competem, pois não tem espaço para essas pessoas, justamente por conta de uma série de falácias que são construídas a partir da palavra transexual no contexto esportivo. Um exemplo muito forte disso é de que mulheres transexuais

T: O que melhorou na sua vida desde os 18 anos?
JG: O que mais faz diferença para mim, mas para as outras pessoas é algo bobo, é o uso do banheiro. Antes eu não sabia se eu entrava no banheiro masculino ou no banheiro feminino. Se eu entrasse no banheiro feminino era uma gritaria, se eu entrasse no masculino eu poderia apanhar. Então eu ficava desconfortável. Quando
saía não ia ao banheiro de jeito nenhum. Na faculdade mesmo, a primeira vez que eu entrei no banheiro feminino um monte de menina saiu. Eu vi que não ia dar certo, aí parei de usar o banheiro, mas não por mim, e sim pelas outras mulheres para não constranger e também por ser complicado explicar. “Gente espera ai, eu estou usando o banheiro de vocês por que eu estou sendo obrigado, porque eu não posso usar o banheiro masculino”. Não dá, né? Aí, depois que eu comecei a ter barba e tal, ficou tranquilo, eu entro no banheiro masculino sem problemas e ninguém percebe nada de diferente. A única coisa é que tem que ter o lugar reservado. Mictório não dá e nem todos os banheiros tem o reservado.
T: O que você acha dos banheiros unisex?
JG: Por um lado é bom, principalmente para quem está na transição ainda. Mas por outro, a nossa sociedade não está preparada para isso, porque o que vai ter de homem usando essa desculpa para abusar de mulheres e de trans é enorme. Mas se fosse um lugar que mais pessoas respeitassem, seria uma ótimaopção, não só para quem passa pela transformação, mas para todos que se sentirem à vontade em usar.
T: Atualmente, as pessoas costumam dizer que aceitam e apoiam, mas em situações como essa vemos que não é bem assim, né?
JG: A partir do momento que não esteja dentro da sua casa, na sua família, que você não esteja no mesmo ambiente, a pessoa não se importa. Mas deixa uma trans ou um travesti entrar no banheiro feminino e você vai ver. Vai sair todo mundo. Uma vez eu entrei no banheiro do shopping e tinha uma moça com a filha. Na hora que ela me viu, puxou a filha dela e saiu. Muitas vezes pedi para minha noiva entrar comigo. Ela entrava na frente e eu atrás, bem rápido, para não ser visto mesmo. Às vezes nem lavava a mão por causa da pressa.
T: Teve algum momento que te marcou? Que fez você ter ainda mais vontade de ter a aparência masculina para não ter que passar por esse tipo de situação?
JG: Sim, principalmente na balada que tinha que apresentar RG. Eu falava aos amigos para irmos à um barzinho, mas eles falavam “Ah, você não se importa com isso”. Em pensamento dizia “eu me importo sim”. Chegava lá, apresentava o RG e aí o segurança olhava para a foto, olhava pra mim, olhava pro documento de novo, mostrava para outro segurança e em algumas vezes falaram que era falso, aí me barravam. No médico também. A primeira vez que eu fui no ginecologista, não gosto nem de lembrar. Falei para minha noiva “fala seu nome, quando chegar lá dentro a gente explica”. Ela tentou conversar com a atendente e como não teve jeito, quando chamaram, ela foi na frente e eu
fui como se fosse acompanhante. Quando entramos, para explicar para o médico foi chato e pior ainda ficar naquela posição humilhante. Por isso fui uma vez, nunca mais fui.
T: Como começou o seu acompanhamento com os médicos especializados? Como é o acompanhamento para quem está nessa transição?
JG: No Brasil existem quatro centros que cuidam especificamente de casos transgêneros. Em São Paulo tem o Hospital das Clínicas, foi lá que eu fiz meu acompanhamento. Entrei em contato a secretária do Dr. Alexandre Sadé, o coordenador da área, através de email em outubro de 2012. Em fevereiro de 2013 me chamaram. Passei por uma entrevista com um psicólogo, um psiquiatra e depois de um mês entrei em um grupo no qual tinham 12 pessoas. Fiquei lá durante dois anos, mas a fila de espera para a cirurgia de retirada da mama era gigantesca, em torno de 300 pessoas e feitas apenas uma vez por mês, sendo que em alguns nem tinha cirurgia porque só existe uma sala destinada para isso. Aí eu decidi sair, até por que era muito humilhante, eles nos julgavam como ratos de laboratório. Muitas vezes eu me revoltava porque eles faziam muito jogo psicológico. A psicóloga sempre batia de frente e falava “vocês acham que estão num conto de fadas?”. E a gente sabe que não é assim, obviamente que não é, por isso que nós estávamos lá. Quando se está na fila, tem que ser acompanhado por dois anos e nesse período, tanto o psicólogo, quanto o psiquiatra geral, tem que atestar realmente se você é um transexual. Se tiverem um mínimo de dúvida não se consegue o laudo para a cirurgia. Se ficar os dois anos e conseguir o laudo, você pode fazer a cirurgia, mas é particular. Para conseguir pelo SUS você tem que continuar frequentando.
T: Você tomou hormônios? Como é feita a distribuição do hormônio?
JG: Tomo sim. Antes eu comprava com um rapaz que vendia Durateston. Comprei 15 ampolas a R$ 10,00 reais cada uma e eu mesmo aplicava a cada 21 dias. Nos primeiros dias eu tinha uma alteração de humor muito forte. Depois que eu entrei para o Hospital das Clínicas, parei e hoje eu tomo uma ampola Anibido há cada três meses.
T: Em relação ao seu nome, como foi para você a escolha de João Gabriel?
JG: Com dezoito anos eu decidi falar para meus amigos que eu era transgênero e todos me apoiaram muito. Um amigo chamado Gabriel sempre esteve do meu lado. Decidi colocar Gabriel em homenagem à ele e João em homenagem ao meu avô. Mas não foi fácil ser chamado pelo meu nome social quando eu ainda não havia mudado meus documentos. Para ser chamado como João Gabriel aqui na faculdade eu procurei a direção, mas disseram que não poderiam mudar meu nome na lista de chamada. Então falei com cada professor e todos concordaram em me chamar pelo meu nome social. Lembro que a primeira professora com quem eu falei foi a Drika Lucena e quando pedi para me chamar pelo meu nome social ela disse “claro, qual é o nome? Como você se chama de verdade? Por que isso aqui é falso.”. Riscou o que estava na chamada e colocou meu nome.
T: E Para mudar seus documentos?
JG: Logo que eu iniciei meu curso tive aula de antropologia com a Fernanda Frinhani aqui na ESAMC. Em novembro de 2015 ela me mandou uma mensagem no Facebook falando sobre uma advogada muito boa aqui em Santos que cuida desses casos. Agradeci muito, mas disse que não tinha condição financeira para pagar. Eu já havia procurado alguns advogados e todos cobravam em média R$200,00 a hora. Ela insistiu e disse para eu mandar uma mensagem explicando a situação, sem compromisso. Aí eu falei com a Dra. Patrícia Gorisch e ela me convidou para ir ao seu escritório tomar um café. Fui e no final da conversa ela falou para levar os papéis na semana seguinte. Expliquei que eu não tinha condições e ela falou: “mas eu não estou dizendo que você terá que pagar”. Na semana seguinte levei os papéis e depois de quase um ano o juiz me chamou para audiência. Tive que levar testemunhas para comprovar que eu realmente vivia como João Gabriel. Depois disso foi tranquilo, eu consegui mudar os documentos e hoje não passo mais por nenhum tipo de problema com meu nome.
T: O que não se perguntar para um transgênero?
JG: Eu não me importo com pergunta nenhuma, pelo contrário. Eu prefiro que pergunte.
Não adianta os médicos e estudiosos tentarem explicar porque eles não vivem isso. Só quem vive pode falar como é. Então eu não me importo de responder nada, é melhor do que ficar especulando.


João Gabriel na infância quando ainda era reconhecido socialmente como Marielle.
GÊNERO: REDEFININDO
Diogo Pereira de Almeida sabe bem o que é isso. Desde os 15 anos, ele se descobriu um homem trans. "Chega uma hora que você se descobre transexual e que não há como mudar isso. É algo que você é e continuará sendo. A única escolha que você terá que fazer é se continuará escondendo ou não’’, ele explica.
Hoje com 21 anos, Diogo realiza seu acompanhamento psicológico desde 2012 com apoio das equipes multidisciplinares do Hospital das Clínicas em São Paulo e do Guilherme Álvaro, em Santos, frequentando consultas a psicólogos, psiquiatras e endocrinologista. Ele está na fila para fazer a transgenitalização, mas para chegar até aqui passou por muitos processos. ‘’Eu não considero que a transição tenha um fim. É como se fosse reivindicar um novo tipo de masculinidade que está sempre recebendo informações novas‘’, explica.
Com a ajuda do acompanhamento psicológico Diogo pôde entender o que estava acontecendo consigo mesmo. ‘’Sempre fui masculino desde pequeno, mas não tinha um 'nome' específico. Quando tinha 3 anos, contei para minha mãe que era um menino, mas na época, por falta de informação, ninguém compreendeu muito bem". Diogo tem um canal do YouTube onde conta suas experiências trazendo informações e suporte para quem passa pelo mesmo processo.
Na caminhada para ser visto como se é de verdade, cada um encontrará desafios diferentes e então histórias distintas serão contadas. O que é importante e universal para todos é a liberdade de expressar no corpo. O que a sua cabeça já sabe faz tempo.
Olhar para o espelho e não se reconhecer. Sentir que nasceu em um corpo que não corresponde com a sua verdadeira identidade. É com esse drama que transgêneros convivem diariamente. E para serem o que realmente são, decidem enfrentar muitos desafios. Mas como a psicologia aborda esse tema? Psicóloga há 5 anos, Mallu Neves Navarro conta que não há regras para explicar a transexualidade. "Existem os que já nascem trans e os que desenvolvem isso com o tempo. Cada indivíduo é único".
Entretanto, a forma como uma família lida com um bebê ainda na barriga da mãe pode ser uma das possíveis explicações. "Acredito que durante a gestação, a expectativa dos pais sobre o gênero do neném pode influenciar muito. A criança já vai recebendo aquela vibração, seja para ser menino ou menina, mesmo com o sexo já formado. Então armazena percepções diferentes do mundo, que podem ou não condizer com a do sexo em que nasceu. A conexão entre pais e filhos, mesmo ainda na barriga, é muito forte", explica Navarro.
Mas as origens da transexualidade são o menor dos problemas para quem não se identifica com o gênero que nasceu. A reação da família, dos amigos e o preconceito que ainda existe na sociedade podem tirar o sono dos que passam pela transição e, por isso, o acompanhamento psicológico é muito importante. "Ter alguém para conversar e orientar, é fundamental nesse processo, o qual pode ser muito pesado. O acompanhamento psicológico trabalha nisso. São conversas para a pessoa ir se descobrindo, se aceitando. Ela não tem que se culpar por nada. Todos têm o direito de ter o físico que quer ter, ser quem quiser ser. Em casos de depressão e níveis de ansiedade fora do esperado, um psiquiatra pode receitar medicamentos, mas terapia e força de vontade são primordiais", comenta a psicóloga.
Travesti. Um termo simples e estigmatizado que define uma gama de identidades díspares. Entretanto, a visibilidade da causa LGBT tem conseguido espaço o bastante para trazer à tona a discussão de gênero e sexualidade nos últimos anos.
"Eu nunca fico ofendido quando usam o termo travesti, porém, não é o que eu sou.", afirma Hugo Vicente, GenderQueer e publicitário que desde os 11 não se reconhece no seu sexo biológico. Conta que é difícil de lidar com nomenclaturas, que sente que a população em sua maioria não quer conhecer melhor sobre identidade de gênero e sexual. "Não querem conhecer e também não querem ser reconhecidos como ignorantes. De forma natural, por não fazer parte de sua vivência. Daí partem para a generalização banal."
Hugo diz que só no começo da vida adulta decidiu estudar pra se livrar da pressão que vivia. "Resolvi buscar me entender melhor para poder tornar compreensível para as pessoas que não sabiam quem eu era.".
Quando questionado sobre o seu pertencimento dentre os gêneros, Hugo disse que passou boa parte de sua vida tentando se adequar à sua fisionomia: "Já sentia que esse negócio de pertencer à um único gênero não era parte de mim, mas por medo da sociedade, tentei ao máximo pertencer ao meu gênero biológico"
Barbara Roberts, ou Lucas, 19, que se inspirou na boneca Barbie para criar sua persona, diz que no começo sentiu bastante receio em 'se montar'. "Fui devagarinho, aprendendo a me maquiar e só depois disso eu me montei pela primeira vez." Para ele, Barbara é sua forma de poder expressar e projetar artisticamente a totalidade do que gosta de uma só vez. “Sempre gostei de roupa, de criar, de maquiagem, desenho, teatro e (a Barbara) é a maneira de juntar tudo isso."
Bárbara finaliza com uma passagem de Alice no País das Maravilhas que gosta de citar quando está 'montada': "Receio não poder me explicar, porque não sou eu mesma, entende?".
METAMORFOSE TRAVESTI
